Oficina de Escrita

O que me deixa de bem com o mundo:

As alturas da paisagem que me abraçam...
O ar da noite húmido de ilusões...
A luz e o fogo de alguma humanidade...
A Oficina de Escrita Criativa é um espaço sem fronteiras, sem limites; é um lugar onde eu consegui juntar e unir vários horizontes que se tinham dispersado no meu interior.
Eu amo as palavras escritas. Elas são para mim como as cores, as pinceladas que um pintor oferece ao Mundo numa tela, num quadro. Estão presentes em tudo o que me rodeia, porque no princípio era o Verbo, a palavra, e através dela podemos construir tudo o que desejamos. A Oficina de E.C. deu-me a oportunidade de criar, de conhecer o sabor das palavras, o cheiro, a cor, a luz e o brilho que uma só frase tem. Aprendi nesse lugar, quase mágico, quase irreal, que a escrita é como um rio que não pára, que não transborda, que não inunda - é água que traz sede...
Descobri que podia escapar, fugir pela janela, agarrado a um livro, pendurado numa página qualquer. Não estava preso, não era um preso...

domingo, 27 de julho de 2008

Cafés

O meu gosto pelos cafés não é tanto pelo que lá posso encontrar para beber ou comer. E muito menos pelo fumo, que me incomoda de sobremaneira. É antes pela capacidade que estes espaços têm para captar personagens diferentes. É um ponto de cruzamento. E os melhores cafés são aqueles que têm misturas, uma grande mistura de cores, cheiros, culturas, idades...

Nuno Artur Silva, Público, 17/02/07

Café em Fez-el-Bali


Rachid tentava convencer Mari, dizendo-lhe que gostaríamos de conhecer aquele café ou casa de chá, dizia ele, que era um sítio único e muito especial, conhecido por pouquíssima gente, muito menos por estrangeiros ou turistas, como era o nosso caso.
Desde que estive em Fez-el-Bali, e passados estes anos, nunca cheguei a entender bem o que realmente era aquele local, que terminou por ficar gravado no meu livro de memórias como uma das experiências mais extraordinárias que tive ao longo da minha vida.

De todo o Al-Maghreb-al-Aqsa, ou o que nós conhecemos por Marrocos, extremo ocidente, Fez é sem dúvida uma das mais belas e míticas cidades, e Bab-Boujeloud, é talvez a porta principal que dá entrada no universo de sentidos e sensações que fervilha no seu interior.



Fez-el-Bali já foi o eixo central sobre o qual girou toda uma civilização, sendo ainda hoje um lugar de fortes raízes culturais e espirituais, onde o mais distraído dos mortais poderá sentir o enaltecer da alma ao ser tocada, suave e quase imperceptivelmente, por essências milenares e realidades que evocam histórias e lendas e que ainda sobrevivem ao passar dos séculos, escondidas no emaranhado de ruas esguias, salpicadas por pequenos soucks.

Em Fez respira-se uma atmosfera de contrastes, onde aromas e odores impossíveis de perceber em outros lugares se misturam com o ruidoso colorido das gentes.

Desta cidade fluem o passado e o presente, destilados como um só em pequenas subtilezas ou através das ancestrais técnicas de trabalho, transmitidas de geração em geração, ainda utilizadas pelos artesãos e artífices, que transformam materiais tão diversos como o gesso, o barro, a madeira, o cobre e aquilo que a par do famoso azul cobalto de Fez-el-Bali, empregue desde há séculos pelos oleiros, torna característico o ar que submerge esta cidade: o cheiro a couro, a pele curtida. Desde o bairro dos curtidores, na parte baixa da cidade, sobe um odor forte, quase nauseabundo, a pele de cabra ou bode, a couro virgem, que trabalhado e tingido em cubas a céu aberto, lembra uma gigantesca paleta de cores de um génio louco.




Foi precisamente este odor acre que fez com que Mari recusasse o convite que Rachid e Fatma nos fizeram, a mim, a ela e a Joanna. Além disso o dia fora algo cansativo, com o vaivém através de ruas e ruelas, visitando palácios seculares. Além de que constatar que algumas destas magníficas construções foram transformadas em restaurantes causara em mim uma profunda tristeza. Salvara-se entretanto do meu pesar a Mesquita Karouine, fabulosa, e o Palácio Real, favorito do falecido Rei Hassam II.

Tudo isto, junto com as inevitáveis e obrigatórias paragens nos soucks e a correspondente compra de souvenirs, tinham contribuído para o aparente mal-estar de Mari.

Enquanto eu, para sua surpresa, me deliciava com a incrível rapidez com que o meu olfacto se tinha adaptado aos odores mais agressivos, permitindo-me desfrutar do ambiente e de cada partícula carregada pela brisa, que me recordaram as páginas de um livro que tinha lido há já muitos anos, uma obra de Achmed Sefrioui, «Chapelet d’Ambre», páginas embebidas de um extraordinário simbolismo místico, absorvido durante a infância vivida pelo autor nesta cidade. Da mesma forma foram projectadas na minha mente imagens fugazes de filmes como «Lawrence da Arábia», «Casa Blanca», «Ali Baba», e do magnífico filme de Nabyl Ayouch, «Mektub». Descobri nesta cidade a que cheiram as palavras escritas e as imagens de um filme.

Pensei inevitavelmente em Paulo Coelho, imaginei que poderia ser um reflexo do seu «Alquimista» e que talvez, se eu procurasse bem, poderia encontrar o pastor que abandonou tudo para perseguir um sonho, algures numa destas ruas.

Talvez por saber que a minha vontade era a de acompanhar Rachid até ao sítio que dizia ele ser tão especial, Mari melhorou subitamente e decidiu vir connosco. Se bem que eu penso que há algo nesta cidade que impele as pessoas a saírem de casa e a procurarem nas suas ruas algum pedaço esquecido de magia, ou simplesmente o feitiço de algum djinn, espírito brincalhão que se diverte enganando os mortais, e que poderá estar escondido, observando, por detrás de um ou outro mucharabi. Em qualquer dos casos, Fez tem essa particularidade invulgar de encantamento, que envolve e se dilui no cântico dos Imãs que, da aurora até ao entardecer, convidam desde o alto dos minaretes à oração, à procura do Deus do Islão, flutuando no sempre presente Ala`u Akbar.

A rua era igual a tantas outras, estreita e escura; pairava no ar um cheiro adocicado a tâmaras, frutos secos e a lenha queimada. Mari, que me unia a ela apenas pelo dedo mindinho entrelaçado ao meu, como dois elos de uma só corrente, olhava a casa que tínhamos diante de nós.

Era alta e velha de muitos anos, com pequenos farrapos de cal pendurados do alto das paredes seculares. Reparei que, ao contrário de outros cafés ou casas de chá, esta não exibia nada no exterior que anunciasse ao transeunte que no seu interior serviam fosse o que fosse. Rachid fez soar a madeira da porta com um seco toque-toque. Funcionou como um estranho «Abre-te, Sésamo», e deparámo-nos com uma mulher que nos convidou a entrar, oferecendo-nos um sorriso seguido de um gesto. Era uma espécie de hall de entrada, estéril, despido de toda a forma possível de mobiliário. A mulher que nos recebeu levou-nos até uma escada que apontava para a parte superior da casa, e sem dizer uma única palavra, desapareceu por detrás de umas cortinas.

Subidos os degraus, esperava-nos um homem de estatura mediana, um pouco obeso, que trajava uma djellaba branca finamente bordada fazendo jogo com o enorme sorriso tecido no rosto e que lhe iluminava a face.

Depois do «Salam Malleku» e «Malleku Salam», Rachid chamou-me com um carinhoso Sahbi (amigo), e apresentou-nos Achmmed-ibn-Aziz, dono do local, conhecido por «El-Kalif» ou «Al-Khaima», local que ficaria gravado para sempre na minha memória. Diante de nós, tínhamos uma sala de enormes dimensões, iluminada parcialmente por quatro ou cinco candeeiros antigos, que me lembravam aqueles a petróleo, bem mais pequenos, que na minha infância me resgatavam, a contra vontade, diga-se, da súbita escuridão que por vezes acompanhava uma potente descarga eléctrica, aviso de um não menos potente e estrondoso trovão, que os fuzíveis do quadro eléctrico não podiam aguentar. A semelhança entre estes candeeiros e os da minha infância era incrível, mas, apesar de grandes, eles não tinham a potência suficiente para dissipar as sombras que mascaravam as paredes.

Depois dos meus olhos se terem adaptado à lúgubre luz, percebi que o que realmente eu estava a ver eram sem dúvida os aposentos reais de algum palácio das “Mil e Uma Noites”.

A inesperada beleza do lugar abateu-se sobre mim com o ímpeto das ondas de um oceano de arte que me chegavam através dos zallidj (pequenos azulejos), do estuque trabalhado de forma tão elaborada que parecia sobrenatural, da madeira ricamente pintada, com motivos semelhantes aos que usam tradicionalmente as mulheres, feitos a hena, nas mãos e nos pés. Das vigas que sustentavam o tecto, baixavam leves, quase etéreas, umas cortinas escuras, com riscas coloridas que me recordaram os mantos hendira, que usam as mulheres da tribo «Ait-Haddidou», do Alto Atlas.

Não havia nenhuma mesa, nem cadeiras, nem balcão, nem máquina de café, nem pontas de cigarros abandonadas em cinzeiros. Nada, absolutamente nada, dentro daquele lugar denunciava que estávamos num bar ou mesmo numa casa de chá.

Achmmed guiou-nos por entre a tímida luz dos candeeiros, até um recanto cujas fronteiras estavam demarcadas pelos véus ou cortinas que baixavam do tecto. Sentámo-nos no que se poderá chamar de almofadas, pequenas e redondas, sumamente confortáveis, que ocupavam aqui e acolá o espaço reservado para aquela que seria uma noite de surpresas e de descobertas inesquecíveis. No interior deste quase místico lugar, não haveria mais que oito ou dez pessoas, que presumi serem turistas que como eu estariam atónitos e desconcertados perante a simplicidade vazia da enorme sala, que realçava brutalmente a extraordinária riqueza da arte expressa na multiplicidade de formas e cores que cobriam as paredes por completo. Pensei que se Mulei Idris el-Azhar o fundador de Fez-el-Bali, e em honra do qual se celebra um Moussem (festa do santo) todos os anos no mês de Setembro, tivesse um lugar secreto e preferido onde estivesse em permanente contacto com a mais pura e sublime essência que une todos os povos e tribos que deram origem a esta maravilhosa cidade, tinha que ser aqui. Era este o lugar secreto. E agora eu estava ali – eu estive lá – onde os Profetas e os velhos sábios descansam, enquanto bebem uma taça de chá verde.

Achmmed interrompeu o deambular extasiado dos meus pensamentos, ao perguntar a Rachid o que desejávamos tomar e se tínhamos preferência por algum tabaco em particular ou se preferíamos provar algum tipo de kiffi. Depois de escolhermos as opções, Achmmed sentou-se connosco, trazendo consigo um berrad (chaleira) contendo chá verde de hortelã, acompanhado por vários tipos de crepes, pão de rala, tâmaras, frutos secos, e uma especialidade do «Kalif» ou «Khaima», um saboroso tajine, guisado de cordeiro com amêndoas, nêsperas e especiarias. Fiquei a saber que a forma como este delicioso manjar é preparado constitui um segredo fielmente guardado por Naimah, esposa de Achmmed, e que é passado de mães para filhas há incontáveis gerações. Eu provei a assida, um creme doce de sêmula, que segundo Rachid era o prato preferido do Profeta Maomé.

Soava no interior do lugar uma música inebriante, onde o oud, alaúde, e o bendir, tambor que é tocado como se fosse um adufe português, acompanhavam uma extraordinária melodia, proveniente de uma flauta que imaginei ser a de Ahmed Bidaoui.

Achmmed explicou-me, quando lhe perguntei o porquê daquela decoração, que o local em si era para ele como uma khaima, uma tenda, possivelmente porque lhe corria sangue nómada nas veias, ou simplesmente porque para Achmmed, não há no Mundo lugar mais confortável que uma khaima.

Explicou-me que os tapetes do chão, são kilims, de origem berbere, verdadeiras obras-primas de desenhos geométricos. De tal forma era a sua beleza que eu pensei ver entre eles o tapete voador de Aladino. Fosse ou não fosse, eu creio que qualquer um daqueles incríveis tapetes poderia levar uma pessoa a voar até mundos e oásis esquecidos.

Fiquei a saber que o próprio Achmmed é descendente dos berberes, se bem que ele prefira o nome que os seus antepassados se deram a si mesmos, os Imazirhen, homens livres. Achmmed diz ser um Amazirh, homem livre, amante de um idioma tão antigo como a própria areia do deserto, o tamazariht.

Para Achmmed, Fez-el-Bali é a Alma de Marrocos, e este lugar, este estranho café, ou khaima, de que ele é proprietário, expressa o sentimento espiritual, artístico e místico do povo de Fez.

Achmmed falou-me dos seus antepassados, das suas histórias e lendas e do vento do deserto, que ainda vem nas noites silenciosas chamar aqueles que ouvem a sua voz, e que mantêm viva no seu interior a chama do Amazirh, pronta a iluminar caminhos, por entre dunas de areia, em direcção a oásis, onde odaliscas esperam, com chá verde quente, frutos secos, tâmaras e mel, tudo aquilo que alimenta o sonho de um homem.

Neste singular café, fiz um Amigo, descobri o cheiro das palavras escritas, voltei a apaixonar-me e depois… depois foi o começo da Magia…….

Oficina de Escrita, 07/03/2008

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Acerca de mim

Devo desde já esclarecer que não sou eu o gestor do blogue. Não posso. Não tenho acesso directo à Net. Estou preso há um ano (fez em Junho). Embora fisicamente preso, na minha cabeça, nunca me senti tão livre... Como é que me evado? Através da arte, do desenho, da pintura, da leitura e da escrita. Na pintura, tento encontrar um estilo próprio. Para já, bebo em algumas fontes: Modigliani e Dali, essencialmente. Também tenho um fascínio por Da Vinci, sobretudo enquanto ocultista. Adoro ler sobre exoterismo e filosofia do século XX. Aqui onde me encontro vim encontrar uma Oficina de Escrita, que frequento regularmente todas as semanas. Lá em cima, já disse o que penso desta actividade - um espaço de luz dentro da escuridão do cárcere...

27 de Julho 2008